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Carros e Software Livre

by Ricardo Bánffy last modified Nov 19, 2008 07:29 PM

Sobre as vantagens de se poder olhar dentro das coisas

Outro dia li um artigo no Estado de São Paulo em que o articulista cita o presidente da Microsoft, Steve Ballmer.

Isso é uma discussão velha, mas, como o principal executivo da maior empresa de software do mundo parece não saber a diferença entre livre e grátis (talvez por ambos serem "free" em sua língua pátria), eu me sinto no dever de explicar isso. Ao borrar a fronteira entre livre e grátis, entre free software e freeware, corremos o risco de perder uma distinção importante.

Em poucas palavras, freeware é um programa em que a licença de uso não custa nada. Software livre é quando o programa é seu também, se você quiser.

Para ilustrar essa diferença, cabe uma história.

Lá pelos idos de 86, um colega meu na faculdade de engenharia ganhou um carro. Embora quisesse ser engenheiro eletricista (não existem engenheiros eletrônicos, segundo o CREA), se interessava muito por carros, motores, pneus, suspensões e todas coisas que faziam um carro andar, correr e, naquela época isso parecia menos importante, parar. Se familiarizou com carburadores, comandos de válvulas, blowers, discos ventilados, pinças duplas, radiadores de óleo, turbos. Aprendeu sobre combustíveis, lubrificantes, borrachas, rodas, ligas, engates e câmbios. Não tinha mudado de engenharia, mas sabia, muito bem, o que fazia seu carro andar. Antigamente ele lavava o próprio carro. Depois de um tempo, ele passou a desmontar, limpar e remontar o carburador.

Havia se tornado um power-user. De carros.

Depois de um tempo, passou a fazer algumas mudanças no seu carro. Trocou o carro por um mais "adaptável", trocou o carburador por um maior, mudou o coletor de alimentação, mandou polir os dutos da admissão. Trocou o carburador maior e o coletor de admissão por dois carburadores horizontais. Em alguns dias andava sem o filtro de ar só para ouvir o sibilo do ar entrando pelas cornetas cromadas dos carburadores. Trocou o comando de válvulas por um mais "esperto", mandou usinar o cabeçote para aumentar a taxa de compressão. Trocou as velas. Zeloso, colocou um radiador de óleo para manter o óleo mais frio. Trocou o carter por um maior com aletas no fundo, para impedir que o óleo escapasse do fundo em curvas longas. Trocou as rodas por um aro maior e colocou pneus mais baixos e largos.

Seu carro não era mais igual aos outros - tinha se tornado um exemplar único, só dele. Atendia as suas necessidades. Era, em todos os sentidos, o carro dele.

Para manter o paralelo, ele se tornou um hacker. De carros.

Essa parábola não seria possível hoje.

Não quero ser classificado como retrógrado. Gosto muito da evolução dos carros. Câmbios automáticos (os de variação contínua são o máximo), injeção direta, ignição mapeada, freios ABS, distribuição automática de pressão nos freios, controle de tração independente, tração contínua, computadores de bordo, auxílios à condução... Tudo isso fez com que nossos carros fossem melhores, mais rápidos e seguros.

Mas tudo isso teve um preço.

Você ainda pode alterar vários parâmetros de funcionamento do seu carro. Pode "chipar" sua injeção eletrônica com outros parâmetros de desempenho. Você pode até baixar "mapas" de parâmetros na internet para usar no seu chip (eu não tenho lá muita idéia de como isso funcione, mas um amigo meu garante que tem como, se você tiver um periférico que encaixe no seu computador e no seu chip). Você pode trocar seu filtro de ar por um menos restritivo. Você ainda pode mandar fazer um monte de coisas com seu carro. O ponto-chave da frase é "mandar fazer". Você mesmo pode pouco. Não é mais um parafuso (ou 6) que separam você de um motor mais ou menos potente. São os parafusos, os sensores, o software e o equipamento necessário para carregar o computador do seu carro com os dados e programas que vão deixá-lo do "seu" jeito. Não é mais uma caixa de ferramentas - é um cruzamento de oficina com UTI (quem já viu uma UTI moderna sabe do que eu estou falando). Ou é isso, ou o carro não vai funcionar direito.

Você comprou o carro, mas, em um certo sentido, ele não responde a você. Ele tem outras prioridades além daquelas que você impõe. Essas outras prioridades não estão sob o seu controle. Se você quiser cantar pneus, o controle de tração não vai permitir. Se você quiser que ele saia um pouco na curva, para corrigir com o freio de mão, a estabilização dinâmica pode não deixar. Num certo sentido, ele não é o seu carro. Ele leva você de um lado a outro, mas é *ele* que está levando.

Eu fiz essa parábola para ilustrar essa diferença.

Embora você não compre software livre (você pode comprar um CD com ele, ou ele pode vir numa caixa de Sucrilhos), ele é mais seu do que qualquer outro tipo de software que você já tenha comprado. Primeiro, você normalmente não compra sofware proprietário. O meu Windows XP não é meu. O Windows Millenium no notebook da minha esposa, também não é dela. Nós somos donos de um papel - uma permissão para que usemos estes programas dentro de uma série de condições (não podemos, por exemplo, sair instalando-os em vários computadores). Alguns dias atrás, eu fiquei sabendo que meu Windows XP manda, para a Microsoft, a cada Windows Update que eu faço (e ele faz isso sozinho, sem eu pedir) informações sobre todos os programas instalados na minha máquina, não só os da Microsoft. Não sei e não me preocupo muito com o que eles vão fazer com isso - eles devem ter uma montanha tão imensa de dados que, mesmo que quisessem usá-los contra alguém, levariam séculos para localizar alguém nesse volume de informações. Se eu fosse um concorrente, no entanto, me preocuparia. Esse tipo de dado é maravilhoso para moldar estratégias ("tantos porcento dos usuários de Windows XP têm esse produto instalado" ou "a participação desse tipo de impressora no espaço do Windows 2000 foi ultrapassado por aquele outro tipo" ou ainda "tantos porcento das máquinas instaladas nos últimos meses têm um pacote Office e estão conectadas a uma rede corporativa com acesso à internet"). Essas informações permitem que campanhas pubicitárias sejam melhor construídas, que produtos sejam melhor moldados ao mercado em que serão utilizados e que a Microsoft tenha uma informação que os concorrentes simplesmente não tem.

Você pode argumentar que esse é o preço de manter sua máquina sempre atualizada. Bom... Se o sistema operacional do meu micro de mesa (Windows XP) não me causasse arrepios quando penso em como ele pode ser inseguro, eu não me sentiria tão compelido a aplicar cada patch que a Microsoft disponibiliza. Além do que, nenhuma das minhas máquinas que rodam Debian GNU/Linux precisa mandar qualquer informação a parte alguma para se manter atualizada. Ela simplesmente baixa uma lista de pacotes (componentes instaláveis de software ou documentação), compara com o que já está instalado e baixa e instala os pacotes para os quais existe alguma novidade.

Quando você instala um Linux no seu computador (fora as dificuldades técnicas - é, se você acha que o Linux está pronto para o usuário comum eu posso afirmar que ele não está pronto para minha mãe), o software é seu. Você está no controle. Se você quiser trocar o servidor de web Apache por um Zope, isso é com você. Se você não quer o Apache que vem num pacote (e é fácil de instalar), você pode fazer o seu. Na maioria dos casos, você precisa dominar quatro encantamentos de linha de comando: "tar zxvf" para descompactar os arquivos, "configure" para fazer alguns ajustes, "make" para compilar o programa e "make install" para instalá-lo. Fiz isso semana passada com meu cliente de messaging, o Gaim. A versão em pacote (fácil de instalar) não suporta MSN e pede que eu cadastre meus colegas de ICQ, enquanto que a versão de desenvolvimento ("de ontem") não tem nenhum desses problemas. Veio em forma de código-fonte (que eu poderia, se quisesse, ler e, se eu fosse um banco, até auditar) que eu mesmo compilei (com esses encantamentos que eu mencionei) em menos de 5 minutos. Em 10 eu estava chamando meus amigos.

Outra coisa que as pessoas entendem errado (não só o Steve Ballmer) é que você não precisa ir todo de software-livre. Há um terreno fértil no meio do caminho. Eu rodo Windows XP, Mozilla, Gaim, Tomcat e Zope. Fora o primeiro, todos são produtos de código aberto. E rodam juntos, felizes, na mesma máquina. Não preciso abandonar o Windows para rodá-los. Se amanhã eu comprar um notebook Apple, eu posso rodá-los todos sob o MacOS X (exceto o XP, claro) - até mais fácil: MacOS X tem um coração Unix. Rodo também o cygwin (um "verniz" Unix que pode ser passado sobre um Windows e que permite, entre outras coisas, que eu compile e rode programas feitos para algum "sabor" de Unix sem ter qualquer dor-de-cabeça - melhor ainda: que eu compile meus programas com alguns dos melhores compiladores do mercado). Os vários "sabores" de Unix disponíveis no mercado (Solaris, HP-UX, AIX, IRIX e, claro, MacOS) se beneficiam de software-livre. Eles usam código como o CUPS, o GhostScript (para impressão), as linguagens Perl, Python, Tcl, compiladores como o GCC, bancos de dados como PostgreSQL ou Berkeley-DB, servidores de web como Apache e servidores de arquivo como o Samba (para redes Windows) ou netatalk (para redes Apple). Esses produtos agregam valor à oferta inicial da mesma forma como o Media Player agrega valor ao Windows.

É a diferença entre um carro que pode ser modificado e outro, em que o único jeito de você ganhar 10 cavalos é comprando o modelo esportivo.

É a diferença entre seu DVD que não toca títulos que você comprou numa viagem não por uma razão técnica plausível, mas apenas porque as distribuidoras de filmes querem garantir que você não possa ter um filme num país pelo preço praticado em outro. É o fiscal da distribuidora que fica ali, no meio da sua sala. Que bom que ao menos ele não avisa a polícia de que você colocou um DVD impróprio nele.

Ainda.

© Ricardo Bánffy